A herança da escravidão vitima uma parcela dos brasileiros

#Rogério Baptistini

Encerrada formalmente há 133 anos, por meio de lei sancionada pela princesa Dona Isabel, durante o segundo reinado do império, a escravidão é uma espécie de processo inconcluso, como o são os processos de transição política que marcam o Brasil. Ao invés de representar a ruptura com um passado abominável, a abolição serviu de base à construção de um novo país, mas manteve intacta a nação forjada na história secular de não reconhecimento de humanidade ao outro. E sobre essa base iniciamos a trajetória republicana, turvando na aparência das formas jurídicas uma sociabilidade excludente, autoritária e preconceituosa. Um mundo de belo feitio, mas com substância horrível.

Integrados à formação nacional na condição de coisa, de bem de capital, durante a colonização portuguesa da América, os escravos tiveram a sua situação denunciada pela Independência política, ela também um processo de transição sem ruptura clara com o passado. A Constituição de 1824, liberal em sua inspiração, incorporava trechos da Declaração dos Direitos do Homem francesa, numa clara desconexão com a vida vivida no trópico. Aqui, o jovem Estado inicia a sua trajetória sob a coroa portuguesa e apoiado na estrutura econômica e social da colônia. Uma aberração diante da horrível realidade e que, para consciências verdadeiramente civilizadas, deveria parecer intolerável.

Conforme Roberto Schwarz, no clássico ensaio “As ideias fora do lugar”, que abre o estudo sobre a obra de Machado de Assis, “Ao vencedor as batatas” (1977), o papel que o liberalismo da Constituição cumpre aqui é o oposto do que desempenha nas sociedades surgidas das revoluções políticas modernas, baseadas no trabalho livre e na economia de mercado. Lá, há correspondência entre a universalidade das leis e a vida social, em que pese o encobrimento da exploração do trabalho; aqui, há contraste. E esse confronto animou uma tímida mudança. O escravo negro não se torna, com a abolição, cidadão livre, mas “negro liberto”, um menor na sociedade política.

A República, que poderia ter elevado o ex-escravo à condição de cidadão pleno e reconhecido a sua humanidade, arrastou a herança dos séculos, legando aos brasileiros de pele negra uma condição de subalternidade na ordem política e social. Longe de ter sido uma verdadeira modernização, a nova forma política prestou-se ao aprumo dos grupos dirigentes, à sua atualização. O governo continuou a ser exercido por cima e por fora do movimento vivo da sociedade.  Sobre a velha capital do Império foi construído um novo Rio de Janeiro. Os humildes, moradores da ruas e dos cortiços, foram criminalizados pelo novo código de posturas da cidade moderna. Perseguidos, lotaram cadeias e asilos de loucos. O poeta Olavo Bilac assim descreve a situação “A lei é feroz: a lei manda considerar vagabundo todo o indivíduo que não tem domicílio certo”.

Visto de fora o Brasil já pareceu ao estrangeiro uma sociedade tolerante para com a diferença de cor de pele.  Na década de 1950, em que pese a história e a desigualdade econômica, o país oferecia ao mundo uma imagem positiva de integração entre os grupos étnicos. Nossa cultura, o futebol e o carnaval exprimiam ao mundo saído da guerra e do horror do genocídio uma possibilidade de integração, convivência feliz e futuro. Para além da cena, entretanto, a industrialização acelerada sobre base extremamente desigual cobrou o custo humano e repôs as hierarquias sociais. O fato é que entramos no século XXI como uma sociedade cindida.

Dos cerca de 700 mil brasileiros que constituem a população prisional, cerca de 61 por cento são negros, conforme dados de 2018. Entre nós, as pessoas de pele negra são as que mais correm o risco de perder a vida por conta da Covid 19, de acordo com o estudo Social Inequalities and Covid-19 Mortality in the City of São Paulo. Não bastasse, a violência policial faz mais vítimas entre esse grupo da população, vide a tragédia que teve lugar na comunidade do Jacarezinho, no Rio de Janeiro, no início deste mês de maio. Não é necessário recorrer aos dados para sustentar a afirmação que são de pele negra, em grande parte, os brasileiros que constituem os estratos inferiores da sociedade. De fato, 13 de maio não é um dia para festejar, pois, como escreveu Raymundo Faoro (1973), em referência a outra situação, “se colocou remendo de pano novo em tecido velho” e as coisas mudaram na forma para a manter a essência.

Doutor em Sociologia. Professor na Universidade Presbiteriana Mackenzie e pesquisador do LabPol -Laboratório de Política e Governo da Unesp/FCL-CAr

#PraTodosVerem: Foto do Rogerio com fundo branco. Ele sorri e está parcialmente de lado com os braços cruzados a frente do peito, um dos braços tem um relógio na cor pratada. Ele tem pele branca e cabelos grisalhos, usa óculos de aros pretos, usa camisa social azul clara e terno escuro.

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